Quando não estamos muito contentes com o produto é porque ele não é honesto. Isso tem muito que ver com uma série de coisas, desde a qualidade intrínseca dele, a sua pertinência e funcionalidade, o aspecto visual, ou com o facto de ser bem feito e o trabalho que representa ter um valor justo.
A Filipa é metade da Mariamélia, a outra metade é a Alexandra. Um destes dias, estávamos a preparar a montagem da sua pop-up em mais “Uma Loja na Oficina” e aproveitámos para trocar umas palavras sobre a loja.
Quem é a Mariamélia e quem são vocês?
Quase que já perdemos o rasto à origem do nome, apesar de ele ainda fazer sentido. Em 2014 fizemos este exercício de criação de uma marca porque precisávamos de qualquer coisa que pudesse traduzir a parceria entre as duas. Fazíamos um trabalho completamente diferente, tínhamos idades diferentes, experiências de vida diferentes, vivíamos em cidades diferentes e tínhamos que encontrar um laço, algo que tivesse que ver com um espaço geográfico e com um certo tempo também. Pensámos que criar uma personagem que tivesse nome de mulher podia ser algo que fizesse sentido. É um nome antiquado, mas que também tem um certo lado cómico. É um nome com memória e história, algo que queríamos passar.
Na altura eu estava a trabalhar como designer gráfica, que é o que fiz sempre. Tinha cultivado, paralelamente, um interesse pelo trabalho artesanal. Já conhecia o blogue da Alexandra, com quem falava pelo Flickr. A Alexandra já fazia peças têxteis há muito tempo e um outro projecto que entretanto tinha acabado. Decidimos então partir para um novo espaço onde as nossas coisas pudessem ser vendidas. Para ser um projecto online ela ia precisar da ajuda de um designer, alguém que a pudesse apoiar, mas que ao mesmo tempo estivesse no mesmo mood, com gostos parecidos.
De 2014 para 2018 o projecto teve muitos acidentes pelo meio. Fizemos muitas coisas em 2015, altura em que voltei para o Porto, depois as coisas abrandaram e no final de 2017 chegámos à conclusão que ou fechávamos o projecto, ou o fazíamos renascer com uma cara nova. Foi isso que acabámos por fazer, ao criar um conceito um bocadinho diferente, com uma abordagem mais séria, mais pensada e estruturada e começar a fazer desenvolvimento de produto, que é aquilo que nós realmente gostamos.
No vosso blogue apresentam um manifesto com cinco pontos.
Eu acho que não me vou lembrar de todos (risos). Estão relacionados com a filosofia de design de produto. Para nós era importante ter balizas para percebermos o que estamos a acrescentar e o que estamos a fazer diferente, senão somos irrelevantes. Uma das palavras que tem ficado muito quando estou a escrever textos e que temos referido muito nas nossas coisas é a ideia da honestidade nos produtos e nos objectos. É uma coisa que procuramos sempre. Quando não estamos muito contentes com o produto é porque ele não é honesto. Isso tem muito que ver com uma série de coisas, desde a qualidade intrínseca dele, a sua pertinência e funcionalidade, o aspecto visual, ou com o facto de ser bem feito e o trabalho que representa ter um valor justo.
É isso a que chamam a verdade dos objectos?
Sim.
Como é o vosso processo?
Há vários diferentes (risos). Há coisas muito espontâneas e outras que são pensadas durante muito tempo e feitas e refeitas, com muita tentativa erro. Há uma parte em que passa pelo desenho, mas o início passa por pensar de uma forma mais abstracta sobre um tipo de objecto que nos agradaria ter. Se calhar este é que é o primeiro ponto dos vários tipos de objectos que desenvolvemos, sejam têxteis ou cerâmica. Nós gostamos muito de imaginar como é que seria o objecto, como ficaria na nossa casa a ser usado por nós. Colocarmo-nos no lugar do cliente.
É esse exercício que propõe às pessoas com quem trabalham?
Quando partimos para uma parceria já é numa lógica de encomenda, com uma ideia mais ou menos clara do que queremos. Mas já fizemos alguns projectos em que lançámos a ideia e a pessoa depois desenvolveu a partir daí, mas agora estamos a trabalhar de uma forma um bocadinho diferente. Queremos trabalhar a ideia desde a raiz e depois ir ter com as pessoas que vão produzir com uma proposta concreta. Há casos em que isto corre melhor do que noutros, claro.
Este é um projecto completamente diferente daquilo que era com uma nova imagem, um site novo, produtos diferentes. Agora nota-se que há um foco novo, que é o espaço da casa e uma certa ideia de estar ocupado em casa. Eu gostava de conseguir estar ocupado em casa de uma forma diferente e acho que é por isso que, paradoxalmente, dou um certo significado às coisas. Para quem é esta loja? Há pessoas que estão muito tempo em casa, claro, mas há outras que estão muito pouco tempo e estas últimas normalmente quando chegam acabam por ter muitas coisas para fazer num curto espaço de tempo. Vocês tem algum arquétipo de cliente, uma pessoa em que pensam quando estão a desenvolver um produto?
Eu gosto de pensar que a maioria das peças são versáteis e que se podem adaptar a pessoas com ocupações diferentes, mas há essa preocupação em ter algumas peças para as pessoas que têm tempo para fazer coisas com as mãos. Por isso imaginamos pessoas que percebem e dão valor a esse processo e que acabam também por valorizar o nosso desenvolvimento de produto. Mas também tentamos que os objectos não tenham uma utilização muito fechada, que possam ter usos muito diversos e possam ser adaptados.
Quem trata bem das plantas em casa vai perceber melhor a natureza, quem faz o seu pão percebe melhor o impacto da alimentação.
Por outro lado, o quotidiano das pessoas pode ser complexo. As poucas horas em casa são passadas a cozinhar, estar com os filhos, deitar os filhos, passear o cão, arrumar. Que partido da Mariamélia pode tirar uma pessoa assim? O que isto pode acrescentar numa óptica de consumo ou de bem estar? Porque se não se tirar partido, é apenas mais uma coisa. Este é um desafio que também temos aqui com os nossos produtos. Queremos vender “produção responsável”, mas corremos o risco de com muitos clientes só estarmos a vender mais coisas.
Essa é a questão filosófica que me assalta mais vezes. No fundo o que é que eu estou a fazer? Estou só a reproduzir mais do mesmo e a alimentar um sistema e uma engrenagem que já critico tanto? Mas também acredito que cada vez mais seja difícil fazer uma diferença que não passe também pelo consumo, ou pelo não consumo, mas que esteja relacionado com o acto de consumo. Aquilo que pretendemos dar com os nossos produtos é uma ideia de vida, da valorização do tempo, de abrandamento.
Há também um lado ético, mais pedagógico neste sub-universos com que trabalhamos, do pão e das plantas. Podemos através dos objectos fazer uma certa pedagogia. Quem trata bem das plantas em casa vai perceber melhor a natureza, quem faz o seu pão percebe melhor o impacto da alimentação.
Sentes que há peças que são mais da Alexandra, outras tuas e aquelas que são das duas?
Há esse lado mais pessoal em algumas que foram realmente feitas por ela e noutras feitas por mim. Mas as que foram feitas em parceria não.
Qual é a tua peça preferida?
É uma pergunta difícil. Penso que é capaz de ser o saco, se bem que há umas peças de cerâmica que estamos agora a desenvolver que acho que vão ficar muito boas e que acho que vão ser das minhas favoritas. Este saco de sarja, um tote-bag comum, ficou com um desenho e um formato que tanto eu como a Alexandra andávamos à procura.
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