Este texto é uma parte de uma entrevista feita para o Podcast da Gazeta do Ciclista e, por isso mesmo, há uma versão audio mais competa, que podes ouvir aqui.
As fotos no Porto são da autoria da Velo Culture, as de viagem foram cedidas pela Marlene.
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A Marlene Martins , ciclista do no dia-a-dia e programadora informática, veio de Setúbal para trabalhar no Porto por nove meses, mas já cá está há quatro anos. Foi imbictified. De tal maneira, que acabou por ficar tão farta disto, que pegou numa bicicleta e foi pedalar para o fim do Mundo.
Lau: Estiveste no Chile e na Argentina quatro meses.
Marlene: Patagónia é uma coisa que sempre esteve no fundo da mente, ali parada, à espera que houvesse uma oportunidade. Como não havia assim nenhuma oportunidade, decidi criar uma e pedi uma licença sem vencimento para fazer uma viagem maior. Como tinha sempre a ideia de viajar de bicicleta, decidi juntar as duas coisas e fazer esta viagem maior de bicicleta.
Escolhi o Chile, por causa da Patagónia e, como ia sozinha, achei que começar (a viajar de bicicleta) na América do Sul seria mais fácil do que ir para um Continente onde a língua fosse muito estranha. Sempre se arranha o Espanhol e a Argentina e o Chile têm fama de serem sítios mais ou menos seguros.
Foste numa lógica de pedalar sempre?
A ideia era pedalar sempre. Nos dias que pedalei, porque não pedalei todos porque foram quatro meses, pedalava cerca de 70 quilómetros. Dependia sempre muito do terreno, da distância a que ficava a próxima aldeia, coisas práticas desse género.
Não tinha um plano muito específico, sabia que existiam sítios onde queria mesmo ir, mas o resto do percurso esteve sempre em aberto. Houve até mudanças grandes de plano porque na altura não fazia muito sentido ir para um sítio em vez de ir para outro. Por exemplo, a minha ideia inicial era atravessar os Andes no terceiro dia de viagem e quando comecei a pedalar, logo no primeiro dia, tirei essa ideia da cabeça. Isto porque nunca tinha andado com a bicicleta carregada, era a primeira vez que estava a usar a bagagem toda e levei uma tareia descomunal. Achei então que tentar atravessar uma cordilheira seria um bocadinho idiota logo na primeira semana!
O plano ia sendo feito dia-a-dia. Via sempre no dia antes qual era a próxima povoação.
O plano ia sendo feito dia-a-dia. Via sempre no dia antes qual era a próxima povoação. No início marcava muitas coisas pelo AirBnB ou pelo Booking, porque havia sempre coisas disponíveis, mais para o final da viagem já não marcava. Chegava ao destino e ia vendo. Mais ou menos. Havia sempre algum sítio para ficar. Antes da viagem vi muitos mapas e fiz alguns apontamentos, mas no final, quando estás no terreno, não servem de grande coisa, porque aquilo que antes tens na cabeça acaba por ser muito diferente daquilo que depois encontras por lá.
Preparação física?
Não houve muita. Umas voltinhas aqui no Porto e fui num fim-de-semana testar os alforges traseiros e… mais nada.
Chegaste a ir uns dias com o Pelotão do Arrasto.
Sim, antes do Pelotão entrar em pausa.
Sim, em licença de paternidade.
Foram definitivamente as maiores voltas de treino que fiz para a viagem.
Se o teu treino foi feito com o Pelotão do Arrasto está tudo dito. Foi muito precário. E a mecânica?
Sei trocar câmaras de ar. Tenho algumas ideias de como se fazem umas coisas mas nada de muito complexo. Se tivesse tido algum problema grave ia estar ah (silêncio) tramada.
A preparação da viagem propriamente dita?
Li maioritariamente blogues de pessoas que fizeram a mesma coisa que eu. Foi grande parte da minha leitura. Muitas pessoas dizem que o terreno é muito difícil, que não há assim muitas coisas pelo caminho. Por exemplo, há segmentos de 400km sem um multibanco. Essas coisas são importantes de saber antes de ir, até porque 400 km ainda é um bocadinho e se ficas sem dinheiro a meio. Às vezes ficas mais preocupado depois de ler do que se não tivesses lido nada, mas depois no final não é assim tão difícil.
Às vezes ficas mais preocupado depois de ler do que se não tivesses lido nada, mas depois, no final, não é assim tão difícil.
No blogue tens muitas fotografias mas na maior parte delas não estás de bicicleta.
Sim, é mais fácil tirar fotografias quando estás a pé do que quando vais na bicicleta. Principalmente tirar auto-retratos. Descobri para aí na terceira semana que todo o esforço para tirar um auto-retrato não compensa.
Em muitas vais a pé com um grupo de pessoal.
Encontras sempre outros ciclistas quando chegas a uma povoação, principalmente na parte da Carretera Austral. E por vezes encontras pessoas com quem pedalas durantes uns dias. Porque te dás bem com elas, porque têm o mesmo ritmo, porque vão para o mesmo sítio. Acabei por fazer alguns trekkings, alguns de vários dias, outros só de um dia. Fui à Reserva Nacional de Cerro Castillo e ao Parque de Torres del Paine (ambos no Chile). Na Argentina também fiz um trekking de vários dias no Parque Nacional dos Glaciares.
E alimentação?
Comi bastantes empanadas, deve ser o almoço perfeito para o ciclista, porque não precisas de talheres e podes guardar na bolsa do guiador.
Uma pessoa que conheci perguntou-me se eu tinha algum plano alimentar e eu respondi que sim: “como quando tenho fome”. Tinha sempre snacks na bolsa. Bolachas, amendoins, coisas bastante calóricas, mas de resto não tive assim grande cuidado. Era o que havia pelo caminho.
Qual foi o maior desafio superado?
Foi quando acabou o alcatrão e começou a gravilha e as subidas maiores, porque com a bicicleta totalmente carregada havia sítios em que não era muito fácil passar. Voltar para trás nunca foi uma opção, porque se voltasse para trás no dia a seguir tinha que fazer aquilo outra vez.
O mais difícil foi provavelmente a primeira semana. Habituar-me à bicicleta, porque a maneira como andas com ela carregada é completamente diferente. A partir daí foi tranquilo.
É mesmo muito raro estarmos completamente sozinhos e mesmo nos momentos em que estás sozinho, o sítio é tão incrível e ao andar de bicicleta por aquelas paisagens não dás conta de que estás sozinho.
E o grande medo que acabou por ser totalmente infundado?
Foi a minha primeira viagem sozinha, por isso tinha algum receio de me aborrecer ou acontecer alguma coisa e não ter ninguém para me ajudar, mas é mesmo muito raro estarmos completamente sozinhos e mesmo nos momentos em que estás sozinho, o sítio é tão incrível e ao andar de bicicleta por aquelas paisagens não dás conta de que estás sozinho. É mesmo incrível.
Muitas das coisas que lemos, como a insegurança, normalmente são infundadas. Todas as pessoas que conheces no caminho, sejam ciclistas, sejam pessoas que moram no sítio, estão quase sempre prontas para ajudar.
O que andaste a carregar que mais valia ter ficado em casa?
Tinha um alforge cheio de comida, que nunca foi necessária. No máximo andava dois dias sem paragem em povoações e por isso tinha sempre sítios para comprar o que comer. Levei comida demais, de resto, acho que usei praticamente tudo o que levei, o que é estranho, porque levava muita coisa.
E o que é que não levaste e te fez falta?
Levava definitivamente uma bomba melhor. A minha não era grande coisa e demorava imenso tempo de cada vez que tinha um furo. Às vezes, por não encher suficientemente o pneu, voltava a ter um furo passada meia hora. De resto, acho que havia mais coisas que deixaria para trás do que coisas a levar.
Que material utilizaste?
Demorei imenso tempo a escolher a bicicleta. Devo ter visto reviews de centenas de bicicletas diferentes. Gostei muito do aspecto da Genesis e encontrei uma promoção muito boa. Nos reviews que li pareceu-me a bicicleta ideal para esta viagem, tem todas as furações para encaixar os porta-cargas. Podia ter mais mudanças, seria a única coisa que mudaria, porque algumas das subidas podiam ter sido mais tranquilas.
Resumindo, fizeste uma bicicleta de quatro meses sem pensar muito no assunto, sem preparação física e escolheste a bicicleta tendo como base o critério estético. Eu faria exactamente o mesmo.
Sim.
Vais publicar a história em algum lado? Vais fechar o blogue?
Vou publicar o resto, já tenho alguns rascunhos feitos, mas é muito mais difícil escrever agora do que quando estava lá. É quase como viajar outra vez, é muito bom, mas é mais difícil de escrever.
O que fizeste para passar o tempo?
Nas partes mais aborrecidas da viagem ouvi podcasts e ouvi muita música. Na Pampa Argentina é tudo plano, as estradas são a direito. Consegues ver tudo a 50km de distância. Estive a ouvir um podcast sobre história e ouvi um segmento inteiro sobre a Primeira Guerra Mundial. Não era muito uplifting, mas era extremamente interessante.
Interrupção do interesse do querido leitor: é podcast é o Hardcore History e bem, promete. Podem conhecer aqui.
Acabavas as jornadas diárias a tempo de ainda relaxar um bocado?
Sim. A minha ideia foi sempre acabar por volta das cinco ou seis de tarde, ainda de dia, para chegar ao sítio, ter tempo para ver onde ia ficar sem ter que andar a bater a portas já de noite e para ainda dar uma volta no sítio.
Que parte da viagem recomendarias a quem não tem quatro meses para viajar?
A parte sul da Carretera Austral. Para mim foi o ponto alto. São cerca de 600 km, por isso em duas semanas é perfeitamente fazível.
As aventuras e desventuras da Marlene na Patagónia podem ser lidas no blogue dela, aqui.
Podes ouvir aqui a entrevista completa.
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