A coisa mais parecida com um comboio a circular entre a Ribeira e Matosinhos.
Seria justificado começar este texto à pescador de cliques com uma coisa do género “Marginal, um desastre iminente”. Mas, vou começar de forma mais suave, com um “Marginal, como sacrificar o melhor que a cidade tem em nome do Deus-Carro”, para isto não ficar com um tom demasiado catastrófico. Contudo, a verdade, é que, para alguém que se desloca nesta geringonça chamada bicicleta e pedala na Marginal diariamente, a palavra “desastre” não sai da cabeça, o que é uma pena.
Cantareira, invente o seu próprio percurso.
Começando pelo lógico. À falta de ciclovia, que é coisa aparentemente inexistente entre o Largo António Cálem e a Ribeira, só nos resta a estrada. O problema, é que essa, quase ninguém quer para pedalar. A estrada é demasiado larga e dada a aceleras, mas não o suficiente para permitir ultrapassagens em segurança, especialmente quando há trânsito nos dois sentidos.
O percurso é um concurso de razias, tanto ao ciclista à direita, como ao carro que vem pela esquerda no sentido oposto. Ao lado há um pequeno passeio alcatroado e com vista de rio, muito estreito e cheio de gente, mas é suficientemente confortável e a vista suficientemente boa para o ciclista arriscar.
“Todos gostam do passeio ao longo do Rio, mas queixam-se da falta de condições para os ciclistas”
Do lado oposto a este passeinho panorâmico acontece o contrário. Um passeião de piso empedrado, que está encostado a um “muro” e tem os carris do eléctrico. Este é, na minha opinião, um grande erro de desenho. Ou melhor, três erros. O “passeião” é muito desconfortável para caminhar ou pedalar, tem carris e está do lado errado da estrada. Foi criado um espaço generoso, mas desconfortável.
O “passeião” foi desenhado a pensar no transporte público, mas lá só passa, e de vez em quando, o pseudo transporte público, com preços tão altos que só leva turistas, cuja pressa não justifica qualquer tipo de vantagem na hierarquia da estrada e muito menos um canal dedicado. É que aquela malta toda está de férias e, na melhor das hipóteses, só faz este percurso duas vezes na vida, uma para lá, outra para cá.
No Ouro há um bar com vista para os ciclistas.
Percebo a boa intenção de quem desenhou o canal do eléctrico, mas aquilo não resultou como devia, apenas porque o transporte não é para todos. E não sendo para todos, o eléctrico deveria seguir com os carros e dar espaço a meios de locomoção mais democráticos, saudáveis e ecológicos, como o andar a pé, o andar de bicicleta, ou o andar de eléctrico com um Z2.
Arrábida. Not bicycles que aqui se fish.
A bicicleta, é, neste momento, a forma que uma multidão de pessoas escolheu para se deslocar num dos percursos mais planos e mais bonitos do Porto.
Quem pedala somos nós, os portuenses que andam de bicicleta para cá e para lá nos afazeres diários, nas idas para o trabalho ou para a escola, a treinar ou a passear. E também os turistas, que andam muitas vezes aos pares, ou em bandos, não raramente com um guia acelerado e sorridente à frente. Há ainda um grupo cada vez maior, que são os peregrinos que fazem o Caminho da Costa, muitos de bicicleta, ainda mais a pé.
Inês: utilizar a bicicleta como meio de transporte anda a revelar-se uma aventura. De manhã cedo, sempre junto ao rio, a viagem decorre serena. O Douro tem sempre uma maneira enigmática de dar os bons dias! Cruzo-me com peregrinos e pessoal a fazer exercício, é estimulante e sinto que há uma partilha tranquila. Ao sair do trabalho, por uma questão de tempo, volto pela Boavista. Há sempre histórias para contar: condutores a alta velocidade, carros na ciclovia e pior se torna quando deixa de existir um espaço identificado para circular. Sinto que apesar de ver muitas bicicletas a na cidade, ainda existe por parte de muitos condutores uma incompreensão e rejeição. Para já ainda é Verão e os dias são longos e soalheiros. Quando chegar o Inverno por certo terei mais histórias para contar.
O beliche tem duas camas, mas os putos querem todos ficar na de cima. Há quem diga que na de baixo é legar pedalar uma bicicleta.
Foi por assistir todos os dias aos pequenos conflitos e à organização do espaço improvisada por todos estes ciclistas e pelos peões, que ainda são maioria, seja em passeio, nos seus afazeres, à pesca, em passo de corrida, a beber uma mini num dos bares ao lado do Rio ou em peregrinação, que decidi ir para a Marginal tirar fotografias e escrever este postal. Depois, no Instagram (no meu e no da Velo Culture), pedi a opinião a algum pessoal amigo que também faz este percurso e cujos testemunhos podem ir lendo nos destaques no postal.
António: é muito bonito e há condições de espaço e visibilidade para a coexistência de todos os modos. Mas foi brutalmente mal projectado. Passeio com ciclovia, passeio com trilho de elétrico, ciclovias parciais, com pavimento irregular. Convida ao conflito e ao incumprimento.
Isto? Isto é uma ciclovia, é o que diz na placa.
Curiosamente, ao longo da minha relação com a Marginal, só tive quatro conflitos (talvez por andar quase sempre pela estrada) e que foram todos eles um pouco estrambólicos, um ou outro a roçar o inacreditável.
Conflito 1: durante alguns meses, quando pedava ligeiro na bicicleta de estrada, de madrugada, sempre o mesmo carro fazia questão de passar uma “raza” a poucos centímetros e buzinar. Isto só acabou quando eu próprio deixei de fazer o percurso naquele horário. Ele deve ter continuado a passar-me razas imaginárias.
Pedro: toda a marginal e os retalhos de ciclovia que a percorrem teriam que ser redesenhados e projetados por alguém que realmente saiba o que stá a fazer.
Conflito 2: Ao final da tarde, quase de noite, um ciclista que vem em cima do passeio grita-me que tenho a luz instalada muito em baixo e que isso é proibido (hã?). Ele vinha sem luzes, apesar de ser quase de noite. Se calhar isso não é proibido.
Conflito 3: Num Sábado, ao chegar à Avenida Montevideu vindo de Matosinhos, ultrapasso um grupo de guerreiros, todos vestidos de lycra. Mais à frente, toco à campainha para sinalizar a ultrapassagem a outro grupo que vinha a ocupar toda a largura da ciclovia. Ainda mais à frente, um dos que estava no primeiro grupo aborda-me agressivamente a perguntar porque é que tinha tocado à campainha, porque é que ia de auscultadores (a ouvir um podcast muito baixinho, para continuar a ouvir a estrada, justifico-me aqui), se eu ouvia quando ele tocava à campainha (campainha que ele não tinha e sim, eu ouviria se ele a tivesse para tocar) e a perguntar onde é que estava a minha matrícula e se tinha seguro (seguro que eu tenho e que ele não deve ter). Depois de lhe pedir várias vezes para não me tocar para não cairmos os dois, desisti e acelerei, deixando-o para trás sem dificuldade apesar das minhas calças de ganga e da pasteleira holandesa. Seguramente alguém com dificuldades em relaxar depois de uma semana dentro do carro. Uns quilómetros à frente, já parado e à conversa com um grupo de turistas, vi-o a passar com ar carrancudo, a pedalar uns metros à frente dos amigos. Sim, eu sei, não devo usar auscultadores na ciclovia.
John: está tudo mal sinalizado e mal feito; há rampas muito perigosas e pouca noção do que é ciclovia e do que é para peões.
Conflito 4: O motorista de um Ferrari com aspecto de ser para passear turistas, como quase tudo nesta cidade, buzina-me e faz-me sinal para encostar. Parei, confesso que com curiosidade, até porque nunca tinha tocado num carro daqueles. O rapaz só me queria dizer que eu devia circular mais encostado ao passeio para salvaguardar a minha própria segurança. Ele era simpático e até bem intencionado e lá tentei explicar, também simpaticamente, que não só não tenho obrigação de andar em cima de bueiros, como o Código da Estrada me obriga a dar uma margem de segurança para a berma e que o automobilista é que tem que acautelar o espaço regulamentar para fazer a ultrapassagem.
Puccini: entre a Ribeira e o Passeio Alegre, o ideal seria oficializar a linha do eléctrico como ciclovia, dando prioridade ao eléctrico que, de qualquer forma, só passa de 30 em 30 minutos e asfaltar o piso para torná-lo tão agradável quanto o passeio e a estrada. Depois, bastava fazer uma ligação (pintar o asfalto, não há espaço para segregar) entre o final da linha do eléctrico e a ciclovia que inicia do outro lado do Castelo da Foz e continua pela Avenida do Brasil.
Pela estrada, pela relva, pelo passeio. Em Massarelos há carris, mas a maior parte dos comboios que de lá saem têm pneus de borracha.
Desengane-se quem, depois de ler isto, fique a pensar que a Marginal é um pesadelo. Apesar das crescentes dificuldades, continua a ser o melhor sítio do Porto para pedalar. O resto da Cidade é muito pior e eu ainda continuo a achar que fazer este percurso diariamente é como ir de férias duas vezes por dia.
No Cais das Pedras o senhor ciclista pode optar pela via rápida, ou pela via pedregosa.
Tiago: na minha experiência a zona mais problemática vai do Largo de Massarelos até ao túnel da Ribeira.
Deste lado da Ponte, a bicicleta é a coisa menos polémica.
Gomes: em alguns troços está claramente inadequada para acomodar a sua multiplicidade de usos: caminhada, corrida, ciclismo de lazer e turístico, de quotidiano, sendo que assume alguma perigosidade dado o desnível face ao rio. Rearranjo dos passeios? Segregação de usos? Redesenho do espaço canal? Importa discutir estas opções!
Cálem. Do ser e do não ser.
João: levo dois anos de viagens diárias Foz-Ribeira, Ribeira-Foz e também conheço os perigos! Agora quando faço (o percurso) ando na estrada em alguns troços, mas a maior parte do tempo vou pelo lado da linha. É aí que devia existir uma ciclovia, onde há imenso espaço ou criar uma faixa ciclável devidamente assinalada com sinalização vertical e horizontal.
Relaxa, estás na Foz.
Hugo: alugo bicicletas e há uns tempos uma cliente teve um acidente grave em frente ao Edifício Transparente, no mesmo sítio onde já morreu um ciclista. Há um desnível na rampa que desce no sentido Matosinhos – Porto e que poderia ser facilmente protegido.
Este texto é dedicado ao meu grande amigo Bruno, que um dia, ao sair da loja de Matosinhos com uma bicicleta acabada de restaurar, acabou o passeio estendido nas pedras ao lado do Douro, uns metros abaixo do passeio:
Tive que me desviar de um peão, fiz mal as contas e lá fui eu. No fundo tive sorte, porque a bicicleta ficou numa pedra, eu noutra, o telemóvel noutra e o saco noutra. Nada foi parar ao Rio.
A galeria “Comboios de Bicicletas na Marginal” pode ser vista no meu Flickr.
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